Alice, Ali Sempre

            Estávamos namorando há três anos, mas estávamos juntos há três anos e cinco meses. Alice estava pensando em ir para um intercâmbio em Cambridge, na Inglaterra, em seu último ano de faculdade. Ela ficaria dois semestres longe do Brasil, sem ao menos voltar nas férias. Muito pode acontecer em um ano.

            — Eu quero ver você com todo sucesso do mundo — eu dizia.

            — Então, eu ainda não entendi o motivo de todo esse drama.

            — Muita coisa pode acontecer em um ano, Alice — argumentei —, e outra, eu não quero que você se prive de viver, estando presa em um relacionamento com um cara em um outro continente.

            — Está bem, então o problema todo é o ciúme.

            — Não é hora de ser irônica, Cece.

            — Não me chama de Cece enquanto a gente briga, Caleb.

            Essa era nossa primeira briga de verdade. Nossa primeira briga onde não havia vencedores. Havíamos discutido milhares de vezes, sobre milhares de coisas. Coisas bobas como críticas de livros, filmes, músicas, local para jantarmos ou o que fazer na sexta-feira. Tudo resolvido em questão de uma ou duas horas. Estávamos nessa briga sobre o intercâmbio há duas semanas.

            — Admita que você tem medo que eu conheça alguém lá e só por isso é contra.

            — Não é isso, Alice. Para de entender as coisas errado e já decretar.

            — Está bem, Caleb. Pela milésima vez: me explica.

            — Obrigado.

            — Haha.

            — Assim, ficaremos longe por doze meses. Não vamos nos ver, não vamos nos beijar, não vou buscar donuts para você. Alice, você vai estar em um outro continente. Se você fosse para outra cidade, eu poderia ir para te visitar quase todos os finais de semana. Como é que eu vou te ver em Londres?

            — E a parte do privar, Caleb?

            — Eu não quero me sentir preso em um relacionamento sem futuro. Você vai estar presa em um relacionamento sem futuro. É UM OCEANO INTEIRO DE DISTÂNCIA!

            — Sem futuro? — disse ela, tentando segurar o choro.

            — Não foi isso que eu quis dizer, Cece.

            Ela, que antes olhava para mim usando seu olhar castanho-claro, como sempre fazia, me deu as costas. Alice olhava fixamente pela janela do meu quarto, vendo as crianças brincando na pracinha que havia alguns metros de onde estávamos.

            — Eu te amo, você sabe disso Alice.

            — Eu sei.

            — Olha para mim, por favor.

            Ela se virou. Usava uma camiseta branca, com os dizeres em preto “I MET GOD, SHE’S BLACK”, uma calça jeans azul e seu All Star branco. Pude ver um princípio de lágrima no olho dela.

            — O que a gente vai fazer, Alice?

            — Não sei.

            — O que você quer?

            — Não sei mais.

            Ela se abaixou para pegar sua mochila que estava no chão do meu quarto, encostada na minha cama. Dentro dela, Cece retirou um papel dobrado, amassou e jogou na latinha de lixo que tinha no canto do meu quarto.

            — Eu vim aqui para te mostrar isso, mas você começou a brigar de novo.

            Eu abri a boca para tentar falar qualquer coisa que deixasse ela melhor, mas não consegui achar as palavras certas. Qualquer escritor que se preze sabe usar as palavras. Eu fiquei mudo. Fiquei sem reação. Talvez eu as encontrasse em algum outro momento, enquanto tomasse banho ou em alguma madrugada de insônia. Quando eu encontrasse as palavras certas, elas seriam simples e sinceras, eu pensei, enquanto ela colocava a mochila nas costas e caminhava até a porta do meu quarto.

            — Eu tinha certeza, mas você acabou de colocar um ponto de interrogação sobre o nosso futuro. Na verdade, você usou um ponto de afirmação — disse ela, usando seu olhar castanho-claro sobre mim, de uma maneira que eu jamais esquecerei.

            — Alice…

            — Tchau, Caleb, vou para casa. A gente se fala mais tarde.

            Ela disse, saindo do meu quarto. Naquele momento, caminhei até a tomada e coloquei meu celular para carregar. Eram 17 horas, em ponto. Eu sempre lembrarei desse horário como o horário em que vi Alice pela primeira vez. Após colocar o celular para carregar, fui até minha latinha de lixo e peguei o papel amassado.

Caro coordenador Daniel Brito de Sá,

Venho por meio deste e-mail te responder sobre a proposta que fizeste para o programa de intercâmbio em Cambridge.

É uma honra e um privilégio ser lembrada, entre tantos nomes, para a seleção de intercâmbio. Contudo, por motivos pessoais, sinto que a minha resposta será não. Não poderei ir para a Inglaterra. Ficaria agradecida se, em meu lugar, fosse Eduarda Mathias Dutra, que é tão competente quanto qualquer uma das selecionadas. Após a recomendação, agradeço mais uma vez pelo convite e desculpo-me por não poder estar na lista de intercâmbio.

Alice Victória Bach, estudante.

            O papel que Alice amaçou era, na verdade, uma cópia de um e-mail que ela escreveu para o coordenador Daniel. Ela havia recusado a proposta de ir para a Inglaterra. Alice veio até mim naquela tarde para me contar sobre isso e tudo que fiz foi brigar com ela.

            Após alguns minutos encarando o papel amaçado, decidi ir para a casa dela. Tomei um banho de quase duas horas – sem exagero – enquanto tentava encontrar aquelas malditas palavras certas. Não as achei.

            Jantei, vesti um casaco e saí de casa. O trânsito naquela noite estava anormal, mas se abriu para uma ambulância passar voando pela rua principal da cidade. No meu carro, ouvia “Black Butterflies and Déjà Vu” enquanto cantava. Eu estava procurando pelas palavras certas. Estava esperando pelas palavras certas.

            Alguns minutos depois, chegando próximo da casa de Alice, pude ver aquela ambulância estacionada na frente da garagem. As luzes da casa estavam ligadas e as portas da ambulância e o portão da casa estavam abertos. Os paramédicos não estavam ali, nem sequer o motorista. Desci do carro, deixei as portas abertas – o bairro de Alice era muito seguro, aliás. Corri para dentro do pátio, quando vi a mãe dela chorando. Os paramédicos balançavam a cabeça. Parece que eles estavam procurando pelas mesmas palavras certas que eu.

            Fui me aproximando do pátio dos fundos, por dentro da casa, quando a mãe dela me viu e veio correndo me abraçar. Ela tremia e eu tremi junto. Ergui a cabeça por cima do abraço dela e pude ver o pai de Cece, molhado na beira da piscina. Meu mundo havia desabado.

            Alice estava atirada na beira da piscina. Ela estava pálida, molhada e vestia apenas uma camisola escura – aquela que ela sabia que eu adorava. Ela não respirava. Eu não me movia. Eu queria sentir dor naquele momento, mas não senti nada. Foi como se eu estivesse ali, inconsciente junto com ela. Seus olhos castanho-claro estavam fechados e eu nunca mais os veria. Alice se foi e o amor deixou de ser concreto e voltou a ser apenas uma ideia, uma utopia.

            Sua mãe me contou mais tarde que Alice havia tomado alguns calmantes, mas que talvez tenha tomado demais. Ela iria até a piscina para molhar os pés e pensar um pouco. Seu pai viu quando ela adormeceu e escorregou, mas alguns minutos depois percebeu que ela estava inconsciente. Ele pensou que ela apenas havia mergulhado, como havia dito na hora para sua esposa. Quando foi vê-la era tarde demais e, numa última tentativa impulsiva, sua esposa ligou para a emergência, mas nada poderiam fazer.

            Eu me torturei até morrer com ela. Hoje sei que Alice está comigo, está ali sempre. Ali, se estivesse qualquer outro anjo não seria tão protetor quanto o olhar castanho-claro que ela usava sobre mim.

            Acordei de um pesadelo, mas o pesadelo era real. A única boa notícia é que eu achei as palavras certas e elas eram simples: Alice, eu sempre irei te amar. Ali, sempre.

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